Desvendando a publicidade infantil do Brasil: Separando fatos de ficção

Publicidade infantil é permitida e regulamentada no Brasil

Por Redação NT, com Marici Ferreira, Talita Sabatini Garcia Publicado em 21/02/2024 às 06:11

Um questionamento que sempre emerge a cada ano é se a publicidade de produtos e serviços direcionados a crianças e adolescentes, chamada também de publicidade infantil, é permitida ou não no Brasil. E essa indagação às vezes por mais simples que pareça, na verdade se torna complexa, em razão da quantidade de desinformações sobre o tema. Então, nada melhor do que desmistificar de forma descomplicada, transparente e, sobretudo, com respaldo legal, a legalidade da publicidade infantil no Brasil.

Verdade 1: A publicidade infantil é permitida e regulamentada no Brasil. Ao contrário do que muitos acreditam, a publicidade voltada para crianças e adolescentes é permitida no Brasil, desde que siga restrições e regulamentações específicas. Longe de ser proibida, esta forma de publicidade é cuidadosamente enquadrada legalmente para proteger este público.

Falso: A publicidade infantil é proibida. Nesse sentido, segue respaldo legal: A Constituição Federal promulgada em 1988 prevê de forma expressa à proteção da criança e do adolescente como um dever da família, sociedade e Estado.

Com relação ao regramento da publicidade infantil, a CF traz as premissas fundamentais para a comunicação social, em seu artigo 221, IV, visando a proteção dos valores éticos e sociais da pessoa e da família diante da programação de rádio e televisão.

Nesse sentido, no âmbito constitucional não se verifica nenhuma vedação à publicidade direcionada ao público infantil, somente restrição da publicidade de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias (artigo 220, § 4º, CF).

Já a Convenção Internacional sobre Direitos da Criança, promulgada no Brasil em 1990 por meio do Decreto nº 99.710/90, estabelece os preceitos básicos e avanços para os direitos de crianças e adolescente pautados: (i) não discriminação; (ii) melhor interesse das crianças; (iii) do direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento; e  (iv) respeito às opiniões das crianças.

Determina também como a idade de 18 (dezoito) anos como limite etário para a fixação do conceito de criança, diferentemente do que é aplicado no ECA.

O ECA (Lei Federal nº 8.069/90) considera como criança a pessoa até a idade de 12 (doze) anos incompletos, e adolescente aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade.

Além disso, o ECA faz referência explícita à publicidade em seu artigo 79, o qual proíbe a publicação de anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições para o público menor de 18 (dezoito) anos, fazendo, também, alusão a respeito dos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Também de 1990, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) em seu artigo 37, §2º, reprime expressamente os abusos cometidos na propaganda direcionada às crianças, repreendendo com vigor as publicidades tipificadas como abusivas que se aproveitem da deficiência de julgamento e experiência da criança.

Além disso, a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (Lei Federal nº 11.265/2006) regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância, bem como a de produtos de puericultura correlatos, restringindo a promoção comercial de alguns produtos ao público em geral.

Mais um ponto a destacar é a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei Federal nº 13.709/2018), prevê na seção III o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, o qual deverá ser realizado no seu melhor interesse, com a necessidade de consentimento específico e destacado por um dos pais ou pelo responsável legal.

A simples leitura das leis acima comprova que NÃO há nenhuma vedação no ordenamento jurídico e tampouco nenhuma norma cogente que tenha tramitado pelo devido processo legal que imponha qualquer restrição ou impedimento da veiculação de publicidade infantil.

Além disso, no Brasil é adotado o controle misto da atividade publicitária, ou seja, atuam de forma concomitante o Estado e a Autorregulamentação. O controle estatal é realizado pelo Poder Judiciário, Ministério Público, PROCON, Agências Reguladoras, que norteiam suas atividades com base nas regras e premissas da CF, CDC e legislações pontuais. De outro lado, buscando preservar a liberdade de expressão, a sociedade se organizou de forma a autorregular o que seria a publicidade ética através do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR).

Verdade 2: O controle misto da publicidade é eficiente.

Falso: A autorregulação não é suficiente para proteger as crianças.

O controle misto é uma consequência madura e sensata encontrada em praticamente todos os países do mundo. A autorregulamentação é uma ferramenta importante para monitorar a ética da publicidade, inclusive os tribunais reforçam a relevância da autorregulamentação como fonte informal de direito.

Sendo assim, antes de adentrar na autorregulamentação brasileira, uma pausa para relatar o momento histórico vivenciado no Brasil na época em que o CONAR foi fundado.

O Projeto de Lei de nº 40/1972, de autoria do senador José Lindoso, tinha como premissa buscar um maior controle do estado sobre a comunicação, publicidade e liberdade criação.  Dentre outros pontos, tal projeto de previa que todos os anúncios publicitários somente poderiam ser veiculados após a aprovação da Censura de órgão ligado à administração pública.

A fundação do CONAR

Diante desse cenário, em 1978 a Associação Brasileira de Agências de Propaganda (ABAP), Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), e Associação Nacional de Jornais (ANJ) se uniram no III Congresso Brasileiro de Propaganda realizado em São Paulo para lançar o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (CBAP) com intuito prioritário de preservar o direito à liberdade de expressão e comunicação.

Após a criação do CBAP, no ano de 1979 foi fundado o CONAR, uma organização civil não governamental, constituída por advogados, publicitários e profissionais de outras áreas, cujoescopo é zelar os preceitos básicos instituídos pelo CBAP, assim como defender o princípio constitucional da liberdade de expressão, os consumidores, empresas associadas e autoridades.

Em suma, o CONAR tem um importante papel de não apenas buscar uma maior agilidade à atualização da regulamentação vigente às novas formas de comunicação e tendências de mercados, como de fiscalizar, por meio de céleres procedimentos administrativos, o cumprimento do CBAP, as queixas de consumidores e a prática de concorrência desleal na publicidade.

Apesar de as recomendações do CONAR não outorgarem poder coercitivo ou punitivo, as partes envolvidas nas representações, inclusive àquelas que têm decisões contrárias a seus interesses, respeitam as decisões do CONAR, independentemente do impacto econômico decorrente da decisão, que muitas vezes representa a inutilização de campanhas milionárias ou a retirada de material de publicidade de pontos de vendas ou, até mesmo, modificação de embalagem de produtos.

Em suma, as recomendações do CONAR podem determinar: (i) arquivamento; (ii) alteração; (iii) sustação; ou, ainda (iv) pena de advertência.

No que toca a publicidade infantil, o CONAR saiu à frente, impondo aos anunciantes uma série de cautelas para preservar o direito e interesses das crianças e adolescentes por meio do CBAP, quais sejam:  A sessão 11 do CBAP é destinada às normas que regem a publicidade infantil, inclusive regras em seus artigos 33 e 34.

Em 2013 o CBAP foi atualizado, de modo que os itens 3 a 5 foram acrescidos ao artigo 37 tratando especificamente das ações de merchandising ou publicidade indireta.

Além disso, os preceitos básicos são que todos anúncios deverão refletir cuidados especiais em relação à segurança e às boas maneiras e, ainda, abster-se de desmerecer valores sociais positivos; tampouco provocar deliberadamente qualquer tipo de discriminação; vedando, ainda, emprego de crianças e adolescentes como modelos para vocalizar apelo direto, recomendação ou sugestão de uso ou  consumo, sendo admitida, entretanto, a participação deles nas demonstrações pertinentes de serviço ou produto (vedação ao apelo imperativo ao consumo).

Nesse sentido, cumpre mencionar que o Anexo H do CBAP disciplina a propaganda comercial de alimentos, refrigerantes, sucos, achocolatados, bebidas não carbonatadas e as isentas de álcool a elas assemelhadas, assim classificados pelos órgãos da administração pública, e, obviamente, não exclui o atendimento às exigências das legislações específicas.

or fim, em dezembro de 2021, o CONAR publicou o Guia de Publicidade para Influenciadores Digitais enfatizando a importância do cuidado da identificação publicitária, o qual é aplicado de forma análoga e com mais ostensividade para às publicidades destinadas ao público infanto-juvenil.

Além do CONAR, agências governamentais avalizam a prática da publicidade infantil, apresentando ao mercado cautelas e requisitos para orientar essa atividade.

Uma delas é a Agência Nacional do Cinema (Ancine), que disponibiliza Instruções Normativas que tratam da veiculação de obras audiovisuais publicitárias com conteúdo infantil transmitidos em canais de programação de televisão aberta ou fechada.

A outra é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Embora não regular, tampouco fiscalizar a publicidade direcionada às crianças, atua através de Instruções Normativas sobre o conteúdo e a melhor forma de exposição de informações de alimentos e medicamentos em embalagens e nos pontos de venda.

Verdade 3: A Resolução do CONANDA nº 163 de 13/03/2014 não tem força de lei.

Falso: A publicidade infantil foi proibida pela Resolução nº 163 do CONANDA.

A Resolução do CONANDA tem por escopo dispor sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica ao público infanto-juvenil, exemplificando, alguns aspectos aplicados a tal prática (Art. 1º da Resolução). Dentre eles, a utilização de linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; representação de criança; pessoas ou celebridade com apelo ao público infantil; personagens ou apresentadores infantis; desenho animado ou de animação; bonecos ou similares; distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis; e promoção ou jogos (Art. 2º, I a IX da Resolução).

Além disso, a Resolução define comunicação mercadológica como “toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado” (Art. 1º, § 1º da Resolução).

Tal resolução foi emitida de forma unilateral e arbitrária por órgão colegiado que não tem competência constitucional para alterar as disposições previstas em leis federais como o CDC e no próprio ECA que deu origem a tal colegiado.

A despeito de toda a argumentação de quem defende a validade da Resolução do CONANDA, fato é que a Constituição Federal disciplina no art. 22, XXIX c/c art. 220, § 3º, II, que a atividade publicitária somente deve ser regulada por meio de legislação federal aprovada pelo Congresso Nacional por ser uma competência privativa da União.

O Supremo Tribunal Federal (STF) inclusive já se posicionou sobre a impossibilidade de disciplinar a publicidade infantil por outros meios que não por Lei Federal, da mesma forma que os Tribunais.

Evidente, portanto, que a Resolução do CONANDA é uma norma não vinculante que além de não ter preservado a pluralidade de ideias por meio do debate conjunto das empresas, anunciantes, agências de publicidade, Ministério Público, psicólogos de diferentes escolas, estudiosos etc., não passou pelo devido processo legislativo e, consequentemente, não tem força de lei para qualquer finalidade.

Verdade 4: Não há decisão ou jurisprudência que vede a publicidade infantil no Brasil.

Falso: Existem decisões judiciais que proíbem toda e qualquer forma de publicidade infantil.

A verdade que é nos casos mais relevantes julgados pelo STJ a restrição da publicidade infantil não ocorreu por vedação legal dessa prática, mas sim por descumprimento de outras leis especificas aplicadas a determinados produtos ou questões concorrenciais.

Por exemplo, no caso da Bauducco no qual os defensores da ilegalidade da publicidade infantil sustentam sua causa, a decisão Superior Tribunal de Justiça (STJ) não reprovou o direcionamento de publicidade às crianças. Na verdade, tal decisão apenas vetou a prática de venda casada.

Em um outro julgado o STJ  reconheceu como irregular a publicidade de alimentos classificados como de baixa qualidade nutricional, nas quais eram ofertados brindes colecionáveis associados ao consumo dos produtos, tendo a corte expressamente manifestado sua preocupação com os altos índices de obesidade infantil. Em virtude dessa preocupação e do entendimento de que cabe aos adultos a tomada de decisão sobre a aquisição destes produtos, nesses dois casos a publicidade foi considerada abusiva.

Nesse sentido, vale aclarar que apesar de não ter ingressado no mérito, a decisão monocrática do Ministro Benedito Gonçalves negou seguimento a recurso especial, em virtude da incidência da Súmula 7 do STJ e da Súmula 283 do STF, tendo sido ressaltado que a pretensão recursal “é inadmissível, pois o recorrente não impugnou o fundamento do acórdão recorrido de inexistência de vedação à publicidade infantil no Código de Defesa do Consumidor, no Estatuto da Criança e do Adolescente, tampouco no Código de Auto Regulamentação Publicitária.” Referida decisão indica a relevância do fundamento da decisão do tribunal estadual, que não reconheceu a vedação per se à publicidade infantil.

Ou seja, nenhuma decisão de fato vedou a publicidade destinada às crianças e adolescentes, apenas reiterou a cautela da comunicação responsável e eventuais reflexos das demais leis aplicáveis.

Verdade 5: A publicidade infantil pode ser educativa e benéfica!

Falso: Toda a publicidade infantil é prejudicial.

Muitas ações educadoras são realizadas por meio da publicidade, quando bem aplicadas, servem para educar, inclusive o emprego de personagens infantis pode promover: cidadania; educação; bons hábitos alimentares; e valores sociais.

Alias todos esses conceitos já são parte integrante da conduta de toda a Indústria Criativa, que, em 202, movimentou o equivalente ao gerado pela construção civil e superou à produção total do setor extrativista mineral. A indústria manufatureira, que já 35% do PIB total, está agora em 11%, segundo um estudo da  Fundação Getúlio Vargas (FGV).

A Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e Personagens (Abral) junto com 22 associações desse ecossistema, desenvolve continuamente campanhas para esclarecer esses pontos, combatendo a desinformação e defendendo o direito das crianças à informação, cultura e entretenimento, conforme assegurado pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Diante deste cenário, ao considerar a proibição da publicidade infantil, é importante refletir sobre as consequências. Tal medida não só afronta direitos básicos, mas também pode gerar um impacto negativo na sociedade. Sem publicidade direcionada, as as crianças podem acabar expostas a conteúdos e produtos voltados para o público adulto, tanto no âmbito do entretenimento quanto na alimentação.

  • Talita Sabatini Garcia – Head da área de Contratos, Propriedade Intelectual e Legal Marketing do IWRCF Advogados, bem como Conselheira da ABRAL e Membra do Núcleo de Estudos de Direitos Autorais, Entretenimento e Publicidade da Diretoria Cultural da ASPI – Associação Paulista da Propriedade Intelectual.
  • Marici Ferreira – Presidente da Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e Personagens (Abral) – Licensing International.

Leia mais: https://natelinha.uol.com.br/colunas/coluna-especial/2024/02/21/-desvendando-a-publicidade-infantil-na-tv-do-brasil-separando-fatos-de-ficcao-207864.php

Fonte: Na Telinha / Uol

 

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